Blog do André Gravatá

Pensem nisso, sem isso não conseguirão pensar em nada

André Gravatá

“A liberdade total não existe”, afirma o primeiro. “Claro que não”, diz o segundo.

“A liberdade parcial também não existe”, continua o primeiro. “Também não?”, pergunta o segundo.

“Nada serve pra nada, e o que pode servir não existe”, diz o primeiro mais adiante na conversa. O primeiro debocha do segundo e a conversa continua intensa, o primeiro afirma: “Precisamos concordar, não nos resta muito tempo”.

Então aparece um terceiro personagem, com peso de autoridade, que interroga: “Conseguiram chegar a um acordo?”.

A dupla responde com uma improvisada definição de liberdade e o terceiro personagem diz que agora já podem pensar em outro assunto. Os dois primeiros dizem que não se interessam por um novo tema. O terceiro personagem ordena que continuem pensando sobre a liberdade. Os dois insistem: “Não, por favor!”.

O terceiro personagem conclui o encontro com uma ordem: “Sim, pensem nisso [na liberdade], sem isso não conseguirão pensar em nada”.

Este é um trecho da peça A Comédia Latino-Americana, dirigida por Felipe Hirsch. A cena é parte do livro La Libertad Total, do argentino Pablo Katchadjian, assim como outras cenas da peça nascem também de textos de autores latino-americanos.

Assisti, no primeiro semestre deste ano, à primeira parte deste projeto de mergulho nas vozes latino-americanas, chamada A Tragédia Latino-Americana, e fiquei bastante inspirado pela maneira que a peça desfiou o emaranhado de violentos fios que compõe nossa história. Agora, na segunda parte do projeto, n’A Comédia Latino-Americana, encontro-me novamente com o presente e o passado do nosso continente, que me puxam pela manga da camisa e me perguntam: que futuro se desenha no horizonte?

Encontro n'A Comédia cenas como a distópica conversa sobre a liberdade descrita acima, o desembarque-desvario do filósofo francês René Descartes no Brasil (que nasce da obra do poeta Paulo Leminski) e a estadia forçada, tão espantosa quanto prazerosa, do alemão Hans Staden entre índios brasileiros (de autoria do escritor Reinaldo Moraes).

A peça reúne cenas que despertam estrondosamente clara a percepção de que nossa história se funda e vive em miseráveis relações de desigualdade. Há desigualdade na relação com o europeu, que nos vê de cima, dono da razão. Há uma desigualdade brutal na cena em que se aborda o tema da escravidão e também nas canções sobre pobres e ricos, cidadãos e estado neoliberal, também parte da peça. Há desigualdade na cena dos personagens que conversam sobre liberdade: não é uma contradição perversa que o ato de pensar a liberdade seja sustentado por uma ordem?

A peça me lembrou um texto que aponta a desigualdade como o motor do embrutecimento das pessoas: o livro O mestre ignorante, do filósofo Jacques Rancière.

''Hobbes fez um poema mais atento do que Rousseau: o mal social não vem do primeiro que pensou em dizer 'Isto me pertence'; ele vem do primeiro que pensou em dizer: 'Não és igual a mim''', conta Rancière.

O primeiro que pensou “Não és igual a mim”, nesta reflexão de Rancière, não estava reconhecendo a singularidade do outro, num processo de afirmação da própria identidade, mas sim impondo a própria presença em detrimento do outro.

A peça d’A Comédia se abre com um alto muro de blocos de isopor depois desconstruído pelos atores, ruínas por vezes usadas como degraus para os personagens atingirem outras perspectivas, como quando Descartes olha para o Brasil de cima da sua escadaria da razão. O primeiro que pensou “Não és igual a mim” construiu um degrau entre ele e quem estava por perto (logo em seguida, abaixo).

Nossa utopia perdida com o nascimento do primeiro construtor de degraus é a de que a “dignidade do homem independe da sua posição”, como afirma Rancière. O que mata a possibilidade de contato genuíno entre duas pessoas tanto quanto o muro, que impede categoricamente a visão do outro, é o degrau, que exige que cada um se apresente diante do outro como superior ou inferior.

O primeiro que pensou “Não és igual a mim” descobriu como adiar a liberdade dos outros e de si mesmo.

Não é novidade: as relações de desigualdade estão impregnadas em nós como vento no ar.

Entender isso com clareza soa avassalador. “Porque quem entende, desorganiza. Há alguma coisa em nós que desorganizaria tudo – uma coisa que entende”, diz a escritora Clarice Lispector no texto Mineirinho, cujas palavras sempre me recordo quando estou diante de dilemas espinhosos como os que A Comédia aponta. Vale ressaltar que há pelo menos dois tipos de desorganização: aquela que impede o entendimento, que destrói para não deixar nada no lugar; e aquela que possibilita o entendimento ao acordar nosso olhar com uma força que bagunça certezas, deixando transparecer que até a maioria das certezas cor de concreto são apenas incertezas vestidas com roupa falsa.

A Comédia é um convite à uma desorganização fértil e bem-vinda. As cenas da peça existem como espelhos de nós mesmos e não como corpos estranhos. São longas, assim como são extensos os monólogos internos com os quais convivemos, que reproduzem relações desiguais e incoerentes. São experimentais e incertas, prezando essencialmente a desconstrução de muros e degraus.

Enquanto assistia à peça, com sua trilha sonora vibrante (obra de Arthur de Faria e Ultralíricos Arkestra) e atuações desafiadoras, que demandam atores bem atentos ao fluxo torrencial de imagens que trazem à tona, repetia mentalmente a frase do texto La Libertad Total, quando o terceiro personagem se despede: “Sim, pensem nisso [na liberdade], sem isso não conseguirão pensar em nada”. Ou seguimos um horizonte que almeja a liberdade, não aquela que está à venda, rasa, autoritária e cega, mas a liberdade capaz de desorganizar certezas e desinventar desigualdades, ou não conseguiremos pensar em nada, fazer nada significativo, pois todo o espaço será tomado por muros e mais e mais degraus.

* a peça está no último final de semana em cartaz, no SESC Vila Mariana, em SP, com mais duas apresentações, em 12 e 13 de novembro.