Blog do André Gravatá

Desejo que todas as escolas e casas convidem Solano Trindade para entrar

André Gravatá

Os versos do poeta Solano Trindade (1908-1974) me fazem recordar o educador Paulo Freire, quando Freire afirmava que é fundamental denunciarmos o modo como o mundo é hoje e ao mesmo tempo anunciar outras maneiras de viver.

Solano fala sobre cultura negra, desejo por liberdade, amor, desigualdade racial e social. Solano fala sobre seu tempo e o nosso. Solano diz:

Não construirei
um poema
que me imortalize
Nem passarei para a história
como um grande artista
ficarei com o povo
na sua canção
e assim cumprirei
a minha missão de poeta.

E agora, impregnado com a indignação e a esperança de Solano, selecionei cinco poemas dele pra compartilhar e nutrir quem é poroso à poesia. Quanto mais os versos dele se tornarem íntimos de nós, mais aprenderemos a ler o mundo.

1.
Tem gente com fome

Trem sujo da Leopoldina,
Correndo correndo,
Parece dizer:
Tem gente com fome,
Tem gente com fome,
Tem gente com fome…

Piiiii!
Estação de Caxias,
De novo a correr,
De novo a dizer:
Tem gente com fome,
Tem gente com fome,
Tem gente com fome…

Vigário Geral,
Lucas, Cordovil,
Brás de Pina
Penha Circular,
Estação da Penha,
Olaria, Ramos,
Bom Sucesso,
Carlos Chagas
Triagem, Mauá,
Trem sujo da Leopoldina,
Correndo correndo
Parece dizer:
Tem gente com fome,
Tem gente com fome,
Tem gente com fome…
Tantas caras tristes,
Querendo chegar,
Em algum destino,
Em algum lugar…

Trem sujo da Leopoldina
Correndo correndo,
Parece dizer:
Tem gente com fome,
Tem gente com fome,
Tem gente com fome…

Só nas estações,
Quando vai parando,
Lentamente,
Começa a dizer:
Se tem gente com fome,
Dai de comer…
Se tem gente com fome,
Dai de comer…
Mas o freio de ar,
Todo autoritário,
Manda o trem calar:
Psiuuuuuuuuuu…

*assista neste link a artista Raquel Trindade, filha de Solano, declamando este poema com uma força imensa.

2.
Esperemos

Eu ia fazer um poema para você
mas me falaram das crueldades
nas colônias inglesas
e o poema não saiu

ia falar do seu corpo
de suas mãos
amada
quando soube
que a polícia espancou um companheiro
e o poema não saiu

ia falar em canções
no belo da natureza
nos jardins
nas flores
quando falaram-me em guerra
e o poema não saiu

perdão amada
por não ter construído o seu poema
amanhã esse poema sairá
esperemos.

3.
Canto de Esperança
À minha filha Raquel Solano Trindade

Há sempre um poema me esperando
Nas amadas feitas de ternura
E por isso o meu tempo
Não é contado à velhice
Estou conservado no ritmo
De meu povo
Me tornei cantiga determinadamente
E nunca terei tempo para morrer
Meu desejo de paz se tornou rosa
E a minha vida é enfeitada
Com bandeirolas coloridas
Porque eu tenho uma festa interior
Voltada para o grande amanhã

4.
F. da P.

Amor
um dia farei um poema
como tu queres
dicionário ao lado
um livro de vocabulário
um tratado de métrica
um tratado de rimas
terei todo cuidado
com os meus versos

Não falarei de negros
de revelação
de nada
que fale do povo
Serei totalmente apolítico
no versejar…
Falarei contritamente de Deus
do presidente da República
como poderes absolutos do homem
Nesse dia amor
Serei um grande F. da P.

5.
Toque de reunir

Vinde irmãos macumbeiros
Espíritas, Católicos, Ateus.
Vinde todos brasileiros.
Para a grande reunião.
Para combater a fome
Que mata a nossa nação

Vinde Maria Pulcheria
João de Deus, José Maria
Anicacio, Zé Pretinho
Para a grande reunião
Para combater a malária
Que mata a nossa nação

Vinde trapeiro, pedreiro,
Lavrador, arrumadeira,
Caixeiro, funcionário.
Combater tuberculose
Que mata a nossa nação

Vinde irmãos sambistas.
Da favela, da Mangueira
Do Salgueiro, Estácio de Sá.
Para a grande reunião.
Combater o analfabetismo
Que mata nossa nação

Vinde poetas, pintores,
Engenheiros, escritores,
Negociantes e médicos
Para a grande reunião
Combater o fascismo
Que mata nossa nação

*Para encontrar os poemas de Solano, procure os livros Poemas Antológicos e Canto Negro.