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Carta aberta a todos que moram numa casa em chamas
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André Gravatá

Acender uma fogueira dentro de uma casa em chamas serve para quê?

O Brasil é hoje uma casa em chamas. É uma residência caótica, mobiliada com som e fúria. De todos os lados gritam a palavra golpe.

Muitos daqueles que habitam a casa falam alto, tentam nos convencer sobre soluções inesperadas para apagar o incêndio, mas nos confundem. Estão cansados, veem a voracidade do fogo.

Notícias corroem o pensamento como cupins. Numa das salas, chamada Planalto, já tentaram jogar uma bomba caseira. Em outra sala, chamada Avenida Paulista, pessoas foram atacadas porque vestiam vermelho e não concordaram com gritos pró-impeachment. Pneus estão queimando em outros cômodos.

O clima de linchamento deixou a casa com cheiro de medo. Entre sons de buzinas e apitos, uma mãe leva seus filhos para casa depois da escola. As crianças estão com o rosto contraído de estranhamento. Ao lado delas há gente andando pela rua, rumo à Avenida Paulista, batendo em panela, xingando a Dilma de puta e o Lula de cachaceiro. Descrevo outra cena pior: um ônibus escolar em movimento, com cartazes escritos pelas próprias crianças, pingando ódio em frases como “fora Dilma, queima sua filha da puta” e “fora Dilma sua vaca” – alguém duvida que essas palavras primeiro despontaram no pensamento de adultos furiosos e só depois apareceram na ponta da canetinha de uma criança?

Que aprendizados essas crianças estão absorvendo agora?

O que elas estão aprendendo, na prática, sobre como adultos lidam com questões complexas?

A resposta a uma estrondosa crise política vem em forma de violência e desrespeito?

Quando se fala em educação, muitos se preocupam quando uma criança tem dificuldades para fazer uma conta simples ou ler, mas quem aí se preocupa ao ver que o imaginário das crianças agora mesmo está sendo inundado por adultos que ensinam, com seus exemplos, a nos manifestarmos violentamente, flertando com a barbárie?

Muitos apontarão o dedo para mim e dirão: “Mas nos desrespeitaram primeiro!”. Minha resposta a tal comentário é o resgate de palavras do pacifista indiano Mahatma Gandhi: olho por olho e o mundo acabará cego.

Em alguma medida, todos somos educadores e educadoras. Todos temos responsabilidade pelos conteúdos, falas e comportamentos que compartilhamos com os outros. Quanto mais raiva em circulação, mais violência será aprendida, mais terror virá pela frente. “Vejo toda raiva como resultado de pensamentos alienantes da vida e causadores de violência. No âmago de toda raiva está uma necessidade que não está sendo atendida. Assim, a raiva pode ser valiosa para utilizarmos como um despertador para nos acordar – para percebermos que temos uma necessidade que não está sendo atendida, e que estamos pensando de maneira tal que torna improvável que ela venha a ser atendida. A raiva, porém, nos rouba energia ao direcioná-la para punir as pessoas, em vez de atender a nossas necessidades”, comenta o psicólogo Marshall Rosenberg, no livro Comunicação Não-violenta.

Pergunta importante, valendo um país: quais as nossas reais necessidades não atendidas? A necessidade que nossos políticos realmente nos representem? A necessidade de um sistema econômico que não nos escravize? A necessidade por uma vida com sentido para além do consumo? Veja bem, a pergunta aqui é séria: quais as nossas reais necessidades não atendidas? A necessidade por heróis redentores e a necessidade do linchamento público do outro para nossa catarse são respostas imediatistas e reducionistas perto da complexidade da confusão na nossa casa.

Optar pela não-violência neste momento é uma resistência ao vale-tudo que está se instaurando. Não-violência não quer dizer passividade e aceitação diante daquilo que é injusto, mas sim a negação da precipitação e fúria no julgamento, negação do ódio. Não-violência tem a ver com negação da nossa arrogância. Não-violência tem a ver com firmeza e insistência no diálogo.

Trago para a conversa o neto de Gandhi, Arun Gandhi, fundador do Instituto M.K.Gandhi pela Não-violência, que escreve o seguinte na abertura do livro Comunicação Não-Violenta: “Não é importante que nos reunamos nos momentos de crise e demonstremos patriotismo agitando a bandeira; não basta que nos tornemos uma superpotência, construindo um arsenal que possa destruir várias vezes este mundo; não é suficiente que subjuguemos o resto do mundo com nosso poderio militar, porque não se pode construir a paz sobre alicerces do medo”.

Em outras palavras: casa nenhuma fica em pé com colunas de medo. Se não conseguimos nem reconhecer nossas profundas necessidades não atendidas, e ainda engatinhamos em propor caminhos construtivos que substituam o medo por fôlego para reinventar nossa casa, espero que pelo menos não acendamos mais fogueiras no meio das chamas, senão daqui a pouco nem a casa nem o terreno serão habitáveis.

Se há algo que ainda torna nosso terreno fértil, esse algo é a democracia. Não arrisquemos perdê-la só para atender a necessidades imediatistas, artificiais e raivosas.


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