Uma pessoa ocupada não tem tempo de se impressionar com o dia que amanhece?
André Gravatá
O celular toca. A pessoa do outro lado da linha quer me convencer a assinar um jornal. Prefiro não. ''Como o senhor se informa?'', insiste. Aviso que estou lendo menos notícias. E falo uma verdade íntima que soa como brincadeira: uma das maneiras de me informar é abrir a janela pela manhã e contemplar o céu.
A pessoa que ouve minha frase dá sinais de irritação, como se eu estivesse tirando sarro da cara dela. Ela me pergunta: ''Você trabalha?'', num tom que carrega mais palavras nas entrelinhas: Você é um vagabundo? Só assim para ter tempo de olhar as nuvens!
Prefiro não responder. Daí nos encaminhamos para o fim da conversa. Mas não findaram os ecos daquela ligação. Uma pessoa que trabalha não tem tempo para olhar pela janela? Muito estranho acharmos normal que uma pessoa ocupada não tenha disponibilidade de se impressionar com o dia que amanhece.
Compartilho essa lembrança para falar do filme Paterson, do diretor Jim Jarmusch, que está em cartaz e narra a história de um motorista de ônibus que é também poeta. Mesmo em um cotidiano bem repetitivo, o personagem percebe encantamento e espanto nas ruas observadas a partir da janela do ônibus, com olhos que tateiam o asfalto e as pessoas. Paterson percebe os encontros inesperados e novos de cada dia, como quando ouve o poema de uma adolescente com uma atenção extraordinária.
A poesia faz parte da vida de Paterson como uma prática rotineira. Não aparece em um momento específico do dia, mas sim como um ar pra respirar onde quer que ele esteja.
Nossa cultura nos ensina a separar as experiências vividas em categorias: trabalho, diversão, estudos etc. Assim como numa escola, quando entramos e há o momento de aprender português. Soa um sinal sonoro e se abre a hora da geografia. Outro sinal, então chega a matemática. Interiorizamos a experiência de um mundo partido, fragmentado. O que vemos sempre são retalhos. É raro se deparar com um adulto como Paterson, capaz de brincar com seu tempo presente como uma criança, que ao observar uma caixa de fósforos consegue atravessá-la com o olhar e afirmar “aqui está o mais lindo fósforo do mundo / (…) / com uma cabeça roxa-escura granulada, tão contida e furiosa / e teimosamente pronta para entrar em chamas'' – o autor da maioria dos poemas presentes no filme é o norte-americano Ron Padgett.
Paterson vive na cidade de Paterson, New Jersey, nos EUA, uma sutileza que revela a proximidade entre a cidade e o personagem. E seus poemas são escritos num caderno secreto. A poesia dele é íntima, nasce com um fim em si mesma: a percepção poética no cotidiano é um estrondoso ato criador. Paterson me faz lembrar de uma frase do músico John Cage: “A arte obscureceu a diferença entre arte e vida. Deixemos agora a vida obscurecer a diferença entre vida e arte”.
Deixar a vida obscurecer a diferença entre vida e arte é um ato de resistência em um mundo onde a violência está banalizada e presente nos mais variados momentos do dia a dia. Laura, esposa de Paterson, também escreve sua poesia cotidiana, mas não tanto em palavras, a dela é principalmente visual. Até os cupcakes preparados por Laura são cuidadosamente decorados, repetindo um estilo de linhas em preto e branco que aparece também nas paredes da casa e nas suas roupas. O que está em evidência aqui é a não separação entre vida e arte. É o resgate da disposição para brincar, para abrir a janela pela manhã e presenciar um acontecimento significativo, misterioso, vital – afinal, não é impressionante que o dia amanheça? Isso não é de dar arrepios?