Contra a intolerância, eu preciso ser outros
André Gravatá
''Eu preciso ser Outros.''
Essa frase do poeta Manoel de Barros é um berro contra a intolerância e só hoje ela soou assim nos meus ouvidos.
Durante um encontro sobre literatura infantil, contei uma história que se emaranhou com o verso de Manoel. Compartilhei que um dia estava numa escola pública, durante um trabalho de pesquisa, e participei do almoço com as crianças. O lanche do dia era macarrão com almôndegas. Como sou vegetariano, sorrateiramente peguei meu prato sem carne nem molho.
Já na mesa, meu prato era o único de rosto pálido. Apenas macarrão. Um castelo de macarrão amarelo.
As crianças olharam para aquela refeição sem cor, franzindo-se inteiras, e se espantaram:
– Acabaram as almôndegas?
Respondi que não, rindo. Disse que eu não comia almôndegas. Me perguntaram o porquê. Respondi, como se lançasse uma bomba, que sou vegetariano.
Aí uma garota me disse uma frase que jamais, nunquinha mesmo, vou me esquecer:
– Como assim? Você é mesmo vegetariano? Vegetariano fala português?
Respondi que vegetariano fala português também, gargalhando muito.
Era tão simbólico aquele momento.
Nas entrelinhas,
aquela criança estava me dizendo o seguinte:
eu não tenho contato com vegetarianos
e por isso eles se parecem com seres de outro mundo,
não falam minha língua.
Perto da história vivida na escola, a frase do Manoel de Barros fez ainda mais sentido para mim. Para Manoel, a poesia o expande, o estica, permite que ele seja Outros – com letra maiúscula, como no livro do poeta. ''No escrever o menino viu que era capaz de ser noviça, monge ou mendigo ao mesmo tempo'', diz Manoel em outro poema.
No caso da pergunta da garota, havia leveza e vontade de aproximação. Mas em outros casos, a sensação de estranhamento com o outro se desdobra em intolerância, violência. Brincar de ser Outros, de ver o mundo de perspectivas que não são as nossas, seja por meio da poesia, da literatura ou de outras linguagens, é desautomatizar a percepção, é um ato tão poético quanto político num mundo em que cada um afirma o seu pensamento como o melhor e segue com suas certezas embaixo do braço, sólidas, perigosíssimas.