Blog do André Gravatá

Um convite ao desarmamento

André Gravatá

Ademar, cego e miserável, é convidado para participar de um quadro humorístico num programa piloto. Um espetáculo em que o vestem com camisetas provocantes para participar de eventos das mais variadas temáticas. Com a camiseta 100% CHURRASCO GAÚCHO, ele vai a um encontro de vegetarianos. Com a camiseta 100% COMUNISTA, vai à Bolsa de Valores. Com a camiseta 100% BURGUÊS, vai à sede de um partido de esquerda. É uma cena precisa para descrever a violência do passado e do presente, repetida a cada vez que reduzimos alguém a ''100% ALGUMA COISA''. Esta história é um conto do brasileiro Glauco Mattoso e também uma das cenas da peça A Tragédia Latino-Americana, com direção de Felipe Hirsch, sendo que outros momentos da peça de dois atos e quatro horas também trazem narrativas de autores latino-americanos, como o mexicano Gerardo Arana, o argentino Salvador Benesdra e os brasileiros Lima Barreto e Reinaldo Moraes.

Vejamos a história do Brasil a partir das camisetas autoritariamente impostas: os portugueses chegaram aqui com os dizeres 100% DESCOBRIDORES no peito, num país que já havia sido descoberto há muito tempo. Obrigaram os índios a andar com a camiseta 100% SELVAGENS. Para os escravos: 100% MERCADORIAS. Séculos se passaram e quem podia pagar vestiu os nordestinos com 100% MÃO DE OBRA BARATA. Agora uma população inteira está vestida com a camiseta 100% CONSUMIDORES. Pouco espaço sobra para borrar e barrar as definições. E a fábrica de camisetas não para, novas estão sendo distribuídas: 100% IMPEACHMENT, 100% DILMA, 100% MILITARES.

A infinita quantidade de informação disponível não tem servido à reflexão, mas apenas para engordar as letras das palavras já estampadas nas camisetas.

Ousar não vestir camisetas que encolhem a complexidade do pensamento, que instigam o outro a ostentar seu uniforme de guerra, é um ato de desarmamento. Não estou falando de deixar de lado o próprio ponto de vista, mas sim reconhecer que ponto de vista não se usa só como trator.

A história da América Latina é uma narrativa de tratores em movimento, de insistentes construções e destruições. O cenário da peça A Tragédia Latino-Americana é formado por quase uma centena de blocos de isopor que os atores movem para todos os lados, inventando composições novas que mais se parecem com fragmentos e destroços – à medida que os blocos se movimentam, deixam pedaços pelo caminho. Os próprios atores, aliás, se parecem com os blocos de isopor, movendo-se para lá e para cá, deixam cair pedaços de histórias e dores em suas travessias.

A história que a peça nos conta a partir da voz de autores latino-americanos é uma narrativa que nossa educação, seja formal, seja informal, nos ensinou a ignorar. Aprendemos a ignorar os índios que morreram e morrem violentamente nas mãos do desenvolvimento. Aprendemos a ignorar os escravos que atravessaram dores do tamanho de oceanos. Aprendemos a ignorar os milhões de miseráveis (des)tratados até hoje como pessoas capazes somente de servir. Aprendemos a ignorar quem não veste a mesma camiseta que incorporamos – cada camiseta presa aos corpos é uma máquina que semeia a ausência de empatia.

Ignorar se tornou uma maneira de nos proteger de uma história que, olhada de perto, nos deixa com calafrios.

E a maior qualidade da peça dirigida por Hirsch é a coragem de resgatar, ao mesmo tempo, o passado e o presente que dão calafrios, e mostrá-los com a sutileza e o sorriso incomodado de quem sabe o peso incalculável de cada gota de sangue arrancada à força.

O que mais me espantou ao ver A Tragédia Latino-Americana foi voltar do teatro e me dar conta que a peça não está apenas em cartaz no Sesc Consolação, em São Paulo. A Tragédia Latino-Americana está em cartaz aqui em casa. Na minha e na sua casa.

Ela acontece a cada minuto que compactuamos com a violência que sustenta o chão onde pisamos – e falo aqui principalmente da violência que reduz o outro e nós mesmos a uma rasa definição e nada mais. A Tragédia Latino-Americana acontece a cada minuto em que, numa escola, numa conversa, num jornal, fala-se sobre o Brasil ou qualquer outro país vizinho sem que se leve em conta as várias narrativas que disputam espaço para constituir as identidades em movimento.

Na peça em cartaz nas nossas casas, todos estão feridos. Até que alguém, de surpresa, seja capaz de fugir dos reducionismos violentos, como acontece na cena narrada pelo uruguaio Eduardo Galeano no livro Amares, na qual um casal de professores alemães chega ao México e se apresenta a uma comunidade indígena dizendo:

– Nós viemos para aprender.
Os indígenas ficaram em silêncio.
Depois de um tempinho, alguém explicou o silêncio:
– É a primeira vez que alguém diz isso para a gente.

Ousar aprender com o outro é negar qualquer camiseta ''100% ALGUMA COISA''. É frear a vontade de colonizar quem está na nossa frente. É aprofundar o ato de desarmamento, uma vez que nossa arma mais mortífera é a vontade incessante de enquadrar cada pessoa numa definição e convencê-la do nosso ponto de vista.

Andar desarmado (e descamisado) perto de gente armada até os dentes é perigoso. Mas abre espaço para outro tipo de contato e descoberta. Quem sabe dessa areia movediça e incerta nascerá o que chamamos de diálogo.

A Tragédia Latino-Americana nos deixa com interrogações. ''Uma janela é suficiente para construir uma casa?'', é uma das perguntas levantadas pelo escritor Gerardo Arana num dos textos que inspiraram a peça. Nestes tempos de ódio e amor em migalhas, o Brasil ganharia muito se construísse algumas janelas a mais, mas agora voltadas para dentro, para que, quando as abríssemos, em vez de repetidamente olhar a distante grama do vizinho europeu e achar que ela é 100% VERDE, encontrássemos nós mesmos, aprendêssemos mais necessidade de aproximação do que distanciamento.