Blog do André Gravatá

Por que é importante votar contra o Escola Sem Partido?
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André Gravatá

O Senado Federal abriu uma consulta pública sobre o Programa Escola Sem Partido, que alega combater a ''doutrinação ideológica'' nas escolas.

Por que é importante votar CONTRA?

Porque esse projeto abre brechas para perigosos desdobramentos – afinal, quem vai diferenciar o que é doutrinação ideológica do que é estímulo à autonomia, capacidade crítica, livre manifestação assegurada pela Constituição?

Porque há hoje uma escassez de entendimento sobre a profundidade dos dilemas que vivemos na educação brasileira. Veja só: o projeto de lei do Escola Sem Partido diz que o professor não deveria se aproveitar da ''audiência cativa'' dos alunos para promover seus próprios interesses. Onde está o dilema maior aqui? O professor se aproveitando de uma ''audiência cativa'' de alunos ou a própria existência de um formato escolar que cultiva essencialmente a transmissão de conteúdos, sustentada por uma hierarquia onde quem é autoridade impõe sua voz?

Porque quanto mais tempo dedicado em mudanças na área da educação apoiadas em estratégias de controle, mais serão postergadas mudanças realmente fundamentais. A doutrinação ideológica mais viva na escola não acontece pela boca do professor, mas sim pelo formato do sistema escolar, enraizado na competição, no esmigalhamento das singularidades – transformadas em número, em nota –, na fragmentação dos conteúdos e temas, apresentando aos alunos um mundo sem encanto nem inter-relação.

Por favor, não deixemos de votar na consulta pública contra o Programa Escola Sem Partido, neste link aqui (leva só um minutinho e é uma maneira de tornar pública a insatisfação com essa proposta).

https://www12.senado.leg.br/ecidadania/visualizacaomateria?id=125666


29 crianças e adolescentes são assassinados por dia no Brasil
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André Gravatá

29 presenças
29 futuros
29 urros
[de dor

29 crianças e adolescentes hoje acordaram para o último dia
29 crianças e adolescentes hoje andaram por ruas em contrações
29 crianças e adolescentes hoje viram armas rasgarem o ar dos pulmões
29 crianças e adolescentes hoje vão parar estupefatos diante da morte crua
29 crianças e adolescentes que nasceram no meio de uma luta nua
[que não era delas
29 crianças e adolescentes vão se perguntar, um sopro antes da despedida: por que eu? por que tão cedo? por que bruto? por que medo? por que covardia? por que carência? por que violência em vez de paciência?
29 famílias ou 29 comovidos vão se cobrir com lenços para em seguida dormir pesadelos
29 primeiras lágrimas de susto vão escorrer e molhar os chãos já úmidos de vermelho
29 notícias vão se espalhar por muitos 29 ouvidos
29 notícias vão entrar pelos ouvidos e cair direto na portaria das mentes, causar tristeza, surpresa, dor indiferente
29 notícias da barbárie vão sair da portaria das mentes em minutos e cair no vão dos (esfare)lamentos
29 sustos vão virar ventos
29 crianças e adolescentes são assassinados hoje e hoje mesmo habitam o vão escuro que seca o som dos seus urros, para que os próximos 29 venham, e também os apaguemos da história com borracha de bala, para que caibam os próximos a serem deslembrados, desmembrados, como numa dança macabra de cadeiras que são vidas que fogem expulsas
29 histórias que não merecem, depois de tanto desamor e descaso, receber um olhar profundamente raso


Eu gostaria que meus alunos soubessem…
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André Gravatá

Uma professora com dificuldades para compreender a realidade dos seus alunos inventou uma proposição simples e com profundas reverberações. Kyle Schwartz, educadora da Escola Elementar Doull, nos Estados Unidos, pediu que os estudantes completassem a frase: ''Eu gostaria que a minha professora soubesse…''. E recebeu respostas como:

“Eu gostaria que a minha professora soubesse o quanto eu sinto falta do meu pai porque ele foi deportado para o México quando eu tinha três anos e eu não o vejo há seis anos.''

''Eu gostaria que a minha professora soubesse que não tenho amigos pra brincar comigo.''

Inspirado na ação da professora em busca de uma conexão íntima com os alunos, perguntei a professores, num encontro presencial, se poderiam completar a frase ''Eu gostaria que meus alunos soubessem…''. Algumas das respostas seguem abaixo, compartilhadas como um convite para olharmos com mais sensibilidade para os educadores e educadoras que nos rodeiam. (E lanço aqui outro convite: quem quiser compartilhar sua história nas redes sociais, use a hashtag #EuGostariaQueMeusAlunosSoubessem).

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Que nossas certezas sejam desafiadas
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André Gravatá

Para os pais de X, desigualdade é tabu.
Para os pais de X, o tema das drogas é outro tabu.
Para os pais de X, a homossexualidade é mais um tabu.

Os pais de X têm medo que seu filho entre em contato com tabus. Querem protegê-lo do que não conhecem. Não sabem ao certo como o desconhecido pode influenciar seu filho.

Na escola, os professores de X não têm liberdade para abordar temas que sua família considera tabus. Ontem mesmo o professor de história de X recebeu advertência da direção por uma ''aula sobre ditadura com abordagem enviesada''. A aula sobre Darwin também rendeu uma advertência para a professora de biologia. Outra educadora dessa escola hoje iniciou um capítulo sobre sexualidade. Uma garota compartilhou uma pergunta relacionada com o tema do aborto, colegas se incomodaram e disseram: ''Não responda, professora, escola não é lugar pra falar disso''.

Na rotina, X passa muitas horas numa rede social que exibe principalmente as postagens de pessoas que pensam ideias parecidas. X vive num mundo onde suas certezas não são desafiadas. Pelo contrário, elas são sistematicamente reafirmadas.

Faz pouco tempo, X abriu um livro por acaso. Encontrou essa obra num canto da escola, abandonada, abriu sem ver o título nem autor. Leu trechos:

“A educação deve demonstrar que não há conhecimento que não esteja, em qualquer grau, ameaçado pelo erro e pela ilusão. A teoria da informação mostra que existe o risco de erro (…) em toda a comunicação de mensagem.

(…)

O inesperado surpreende-nos. Porque nos instalamos com demasia segurança nas nossas teorias e nas nossas ideias e estas não têm nenhuma estrutura para acolher o novo. Ora, o novo brota sem cessar. Nunca podemos prever como se apresentará, mas devemos contar com sua chegada, quer dizer contar com o inesperado. E uma vez chegado o inesperado, é necessário ser capaz de rever as nossas teorias (…)

A realidade não é evidentemente legível. As ideias e teorias não refletem, mas traduzem a realidade, que podem traduzir de forma errada. A nossa realidade apenas é a nossa ideia de realidade.”

Por um segundo, X pensou que aquele texto era complexo e interessante.

Por um segundo, X se perguntou se a escola poderia ser um espaço para desafiar ideias de realidade e certezas, quem sabe muitas delas sejam ilusões?

Por um segundo, X pensou que não era nada interessante viver num mundo em que, para respeitarem suas crenças, instaura-se uma tensão constante no ar, um clima de neutralidade que esconde os braços gordos do autoritarismo apertando a garganta da pluralidade.

Por um segundo, a frase “QUE NOSSAS CERTEZAS SEJAM DESAFIADAS” caiu na mente de X como um asteróide. Como erupção de um vulcão dentro do corpo. Decidiu tatuar a frase no braço pra nunca mais esquecer, pra ler todo dia pelo menos uma vez.

Para os pais de X, tatuagem é tabu.

[Que a história fictícia de X exista apenas na ficção.]

 

* Hoje em dia vemos ganhar espaço o projeto Escola Sem Partido, que defende uma educação ''sem doutrinação'', abrindo brechas para perigosos desdobramentos – afinal, quem vai diferenciar o que é doutrinação ideológica do que é estímulo à autonomia, capacidade crítica, livre manifestação assegurada pela Constituição? Para garantir a essência plural do artigo 5 da Constituição, que versa sobre a liberdade de expressão e manifestação, precisamos de escolas com terreno fértil para abordar temas diversos e complexos em formatos de interação com mais significado para alunos, educadores e comunidades, que questionem modelos de educação centrados na transmissão de conteúdos. Para se inspirar com diferentes propostas de educação atuais e em território brasileiro, veja este mapa de Inovação e Criatividade na Educação Básica.

** O livro encontrado por X se chama Os sete saberes para a educação do futuro, de autoria do francês Edgar Morin.


Não pode perguntar, mas pode bater?
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André Gravatá

''Os policiais chegaram gritando: LEVANTA AÊ, MÃOS NA PAREDE, MÃOS NAS COSTAS, TIRA AS MÃOS DO BOLSO, TIRA A TOUCA. Todo mundo assustado, perdido. Bateram com cassetete num estudante que perguntou se os policiais tinham mandado de reintegração de posse.''

Ouvi esse depoimento de um estudante de 16 anos da ETESP (Escola Técnica Estadual de São Paulo), na frente do 3º DP, no Centro de São Paulo. Hoje cedo a PM realizou a reintegração de posse de 4 unidades de ensino, sem nenhum mandado, sem recorrer à Justiça. Acusam os jovens de cometerem danos ao patrimônio público.

O que quero deixar bem marcado na mente de quem ler este texto é esta cena: um jovem pergunta aos policiais se eles têm mandado de reintegração de posse e então como resposta apanha com cassetete.

Como não é possível educar alguém violentamente, não podemos aceitar cenas assim se repetirem, até se tornarem mais comuns do que já são.

Se não há nem espaço para perguntas, o vale-tudo ganha terreno para se instaurar mais e mais. Não pode perguntar, mas pode bater?

Hoje ainda, os estudantes farão um ato na Avenida Paulista: https://www.facebook.com/events/245278935829369/


A violência é extravagante, a não-violência é urgente
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André Gravatá

Desde o ano passado, quando aconteceram as primeiras ocupações em escolas de São Paulo, o governo respondeu os fatos inesperados com estratégias de intimidação. É bomba para um lado, gás de pimenta para o outro, arrastamento de corpos para longe. Está explicitamente em voga a pedagogia da violência.

Um episódio alarmante na pedagogia da violência afirmada pelo governo se deu esta semana. A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo informou em nota que eram ''extravagantes'' as condições defendidas por um juiz para a reintegração de posse do Centro Paula Souza.

Quais eram os pedidos ''extravagantes'' para a reintegração? Copio aqui a lista, descrita numa matéria do UOL:
1) Deveria ocorrer diante da presença de Oficial de Justiça;
2) Com acompanhamento do Conselho Tutelar;
3) Sob observância da decisão da 14ª Vara – com apresentação de cópia da decisão de reintegração;
4) Com a presença e sob o comando do secretário de Segurança Pública do Estado;
5) Sem a utilização de qualquer arma, seja letal ou não (como cassetetes, balas de borracha, gás de pimenta, entre outros).

Diga pra mim: onde estão as extravagâncias?
A palavra ''extravagantes'' na nota oficial me chamou atenção. Fui procurar a etimologia: extravagância vem do latim extravagari, cujo significado é ''andar sem rumo''. Vivemos hoje numa realidade em que é extravagante, sem rumo e ineficiente exigir que não se use armas contra jovens secundaristas?

A posição da Secretaria de Segurança sobre o uso de armas, por exemplo, é que a decisão sobre o porte ou não delas deve ser feita pela Polícia Militar. No entanto, essa justificativa não inspira nenhum pingo de confiança. Se olhamos as imagens da presença da polícia nas ocupações, a primeira palavra que salta à mente é brutalidade.

A decisão judicial com ''condições extravagantes'' foi revertida – ou seja, os policiais puderam entrar armados na ocupação. Acabaram não usando seus aparatos belicosos, mas não economizaram na hostilidade. Arrastaram os estudantes para fora com voracidade. Esta sim, uma cena extravagante.

Além de uma disputa em relação a quais mudanças devem acontecer nas escolas (fechá-las ou não, melhorar ou piorar a qualidade merenda etc.), há uma disputa de narrativas. Destaco aqui duas delas, que andam por extremos. A primeira é sobre a guerra, uma palavra dura que já no ano passado apareceu numa reunião na Secretaria de Educação, cujo áudio vazou na internet, na qual o chefe de gabinete da época dizia: ''Temos que ganhar a guerra final. E vamos ganhar''. A narrativa da guerra gera falas como a do vice-governador de São Paulo, que chegou a comparar a ocupação nas ETECs a uma tática nazista. Outra narrativa em movimento é a do diálogo, experimentada nas ocupações a cada vez que uma assembleia de alunos acontece, a cada vez que um professor visita a ocupação para colaborar com seus alunos.

A narrativa do diálogo é a que mais precisa ser entendida, nutrida, espalhada e reforçada, até que seja impossível rotular a não-violência como uma condição extravagante. Até que a não-violência se torne premissa básica para o contato.


Um convite ao desarmamento
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André Gravatá

Ademar, cego e miserável, é convidado para participar de um quadro humorístico num programa piloto. Um espetáculo em que o vestem com camisetas provocantes para participar de eventos das mais variadas temáticas. Com a camiseta 100% CHURRASCO GAÚCHO, ele vai a um encontro de vegetarianos. Com a camiseta 100% COMUNISTA, vai à Bolsa de Valores. Com a camiseta 100% BURGUÊS, vai à sede de um partido de esquerda. É uma cena precisa para descrever a violência do passado e do presente, repetida a cada vez que reduzimos alguém a ''100% ALGUMA COISA''. Esta história é um conto do brasileiro Glauco Mattoso e também uma das cenas da peça A Tragédia Latino-Americana, com direção de Felipe Hirsch, sendo que outros momentos da peça de dois atos e quatro horas também trazem narrativas de autores latino-americanos, como o mexicano Gerardo Arana, o argentino Salvador Benesdra e os brasileiros Lima Barreto e Reinaldo Moraes.

Vejamos a história do Brasil a partir das camisetas autoritariamente impostas: os portugueses chegaram aqui com os dizeres 100% DESCOBRIDORES no peito, num país que já havia sido descoberto há muito tempo. Obrigaram os índios a andar com a camiseta 100% SELVAGENS. Para os escravos: 100% MERCADORIAS. Séculos se passaram e quem podia pagar vestiu os nordestinos com 100% MÃO DE OBRA BARATA. Agora uma população inteira está vestida com a camiseta 100% CONSUMIDORES. Pouco espaço sobra para borrar e barrar as definições. E a fábrica de camisetas não para, novas estão sendo distribuídas: 100% IMPEACHMENT, 100% DILMA, 100% MILITARES.

A infinita quantidade de informação disponível não tem servido à reflexão, mas apenas para engordar as letras das palavras já estampadas nas camisetas.

Ousar não vestir camisetas que encolhem a complexidade do pensamento, que instigam o outro a ostentar seu uniforme de guerra, é um ato de desarmamento. Não estou falando de deixar de lado o próprio ponto de vista, mas sim reconhecer que ponto de vista não se usa só como trator.

A história da América Latina é uma narrativa de tratores em movimento, de insistentes construções e destruições. O cenário da peça A Tragédia Latino-Americana é formado por quase uma centena de blocos de isopor que os atores movem para todos os lados, inventando composições novas que mais se parecem com fragmentos e destroços – à medida que os blocos se movimentam, deixam pedaços pelo caminho. Os próprios atores, aliás, se parecem com os blocos de isopor, movendo-se para lá e para cá, deixam cair pedaços de histórias e dores em suas travessias.

A história que a peça nos conta a partir da voz de autores latino-americanos é uma narrativa que nossa educação, seja formal, seja informal, nos ensinou a ignorar. Aprendemos a ignorar os índios que morreram e morrem violentamente nas mãos do desenvolvimento. Aprendemos a ignorar os escravos que atravessaram dores do tamanho de oceanos. Aprendemos a ignorar os milhões de miseráveis (des)tratados até hoje como pessoas capazes somente de servir. Aprendemos a ignorar quem não veste a mesma camiseta que incorporamos – cada camiseta presa aos corpos é uma máquina que semeia a ausência de empatia.

Ignorar se tornou uma maneira de nos proteger de uma história que, olhada de perto, nos deixa com calafrios.

E a maior qualidade da peça dirigida por Hirsch é a coragem de resgatar, ao mesmo tempo, o passado e o presente que dão calafrios, e mostrá-los com a sutileza e o sorriso incomodado de quem sabe o peso incalculável de cada gota de sangue arrancada à força.

O que mais me espantou ao ver A Tragédia Latino-Americana foi voltar do teatro e me dar conta que a peça não está apenas em cartaz no Sesc Consolação, em São Paulo. A Tragédia Latino-Americana está em cartaz aqui em casa. Na minha e na sua casa.

Ela acontece a cada minuto que compactuamos com a violência que sustenta o chão onde pisamos – e falo aqui principalmente da violência que reduz o outro e nós mesmos a uma rasa definição e nada mais. A Tragédia Latino-Americana acontece a cada minuto em que, numa escola, numa conversa, num jornal, fala-se sobre o Brasil ou qualquer outro país vizinho sem que se leve em conta as várias narrativas que disputam espaço para constituir as identidades em movimento.

Na peça em cartaz nas nossas casas, todos estão feridos. Até que alguém, de surpresa, seja capaz de fugir dos reducionismos violentos, como acontece na cena narrada pelo uruguaio Eduardo Galeano no livro Amares, na qual um casal de professores alemães chega ao México e se apresenta a uma comunidade indígena dizendo:

– Nós viemos para aprender.
Os indígenas ficaram em silêncio.
Depois de um tempinho, alguém explicou o silêncio:
– É a primeira vez que alguém diz isso para a gente.

Ousar aprender com o outro é negar qualquer camiseta ''100% ALGUMA COISA''. É frear a vontade de colonizar quem está na nossa frente. É aprofundar o ato de desarmamento, uma vez que nossa arma mais mortífera é a vontade incessante de enquadrar cada pessoa numa definição e convencê-la do nosso ponto de vista.

Andar desarmado (e descamisado) perto de gente armada até os dentes é perigoso. Mas abre espaço para outro tipo de contato e descoberta. Quem sabe dessa areia movediça e incerta nascerá o que chamamos de diálogo.

A Tragédia Latino-Americana nos deixa com interrogações. ''Uma janela é suficiente para construir uma casa?'', é uma das perguntas levantadas pelo escritor Gerardo Arana num dos textos que inspiraram a peça. Nestes tempos de ódio e amor em migalhas, o Brasil ganharia muito se construísse algumas janelas a mais, mas agora voltadas para dentro, para que, quando as abríssemos, em vez de repetidamente olhar a distante grama do vizinho europeu e achar que ela é 100% VERDE, encontrássemos nós mesmos, aprendêssemos mais necessidade de aproximação do que distanciamento.


Carta aberta a todos que moram numa casa em chamas
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André Gravatá

Acender uma fogueira dentro de uma casa em chamas serve para quê?

O Brasil é hoje uma casa em chamas. É uma residência caótica, mobiliada com som e fúria. De todos os lados gritam a palavra golpe.

Muitos daqueles que habitam a casa falam alto, tentam nos convencer sobre soluções inesperadas para apagar o incêndio, mas nos confundem. Estão cansados, veem a voracidade do fogo.

Notícias corroem o pensamento como cupins. Numa das salas, chamada Planalto, já tentaram jogar uma bomba caseira. Em outra sala, chamada Avenida Paulista, pessoas foram atacadas porque vestiam vermelho e não concordaram com gritos pró-impeachment. Pneus estão queimando em outros cômodos.

O clima de linchamento deixou a casa com cheiro de medo. Entre sons de buzinas e apitos, uma mãe leva seus filhos para casa depois da escola. As crianças estão com o rosto contraído de estranhamento. Ao lado delas há gente andando pela rua, rumo à Avenida Paulista, batendo em panela, xingando a Dilma de puta e o Lula de cachaceiro. Descrevo outra cena pior: um ônibus escolar em movimento, com cartazes escritos pelas próprias crianças, pingando ódio em frases como ''fora Dilma, queima sua filha da puta'' e ''fora Dilma sua vaca'' – alguém duvida que essas palavras primeiro despontaram no pensamento de adultos furiosos e só depois apareceram na ponta da canetinha de uma criança?

Que aprendizados essas crianças estão absorvendo agora?

O que elas estão aprendendo, na prática, sobre como adultos lidam com questões complexas?

A resposta a uma estrondosa crise política vem em forma de violência e desrespeito?

Quando se fala em educação, muitos se preocupam quando uma criança tem dificuldades para fazer uma conta simples ou ler, mas quem aí se preocupa ao ver que o imaginário das crianças agora mesmo está sendo inundado por adultos que ensinam, com seus exemplos, a nos manifestarmos violentamente, flertando com a barbárie?

Muitos apontarão o dedo para mim e dirão: ''Mas nos desrespeitaram primeiro!''. Minha resposta a tal comentário é o resgate de palavras do pacifista indiano Mahatma Gandhi: olho por olho e o mundo acabará cego.

Em alguma medida, todos somos educadores e educadoras. Todos temos responsabilidade pelos conteúdos, falas e comportamentos que compartilhamos com os outros. Quanto mais raiva em circulação, mais violência será aprendida, mais terror virá pela frente. ''Vejo toda raiva como resultado de pensamentos alienantes da vida e causadores de violência. No âmago de toda raiva está uma necessidade que não está sendo atendida. Assim, a raiva pode ser valiosa para utilizarmos como um despertador para nos acordar – para percebermos que temos uma necessidade que não está sendo atendida, e que estamos pensando de maneira tal que torna improvável que ela venha a ser atendida. A raiva, porém, nos rouba energia ao direcioná-la para punir as pessoas, em vez de atender a nossas necessidades'', comenta o psicólogo Marshall Rosenberg, no livro Comunicação Não-violenta.

Pergunta importante, valendo um país: quais as nossas reais necessidades não atendidas? A necessidade que nossos políticos realmente nos representem? A necessidade de um sistema econômico que não nos escravize? A necessidade por uma vida com sentido para além do consumo? Veja bem, a pergunta aqui é séria: quais as nossas reais necessidades não atendidas? A necessidade por heróis redentores e a necessidade do linchamento público do outro para nossa catarse são respostas imediatistas e reducionistas perto da complexidade da confusão na nossa casa.

Optar pela não-violência neste momento é uma resistência ao vale-tudo que está se instaurando. Não-violência não quer dizer passividade e aceitação diante daquilo que é injusto, mas sim a negação da precipitação e fúria no julgamento, negação do ódio. Não-violência tem a ver com negação da nossa arrogância. Não-violência tem a ver com firmeza e insistência no diálogo.

Trago para a conversa o neto de Gandhi, Arun Gandhi, fundador do Instituto M.K.Gandhi pela Não-violência, que escreve o seguinte na abertura do livro Comunicação Não-Violenta: ''Não é importante que nos reunamos nos momentos de crise e demonstremos patriotismo agitando a bandeira; não basta que nos tornemos uma superpotência, construindo um arsenal que possa destruir várias vezes este mundo; não é suficiente que subjuguemos o resto do mundo com nosso poderio militar, porque não se pode construir a paz sobre alicerces do medo''.

Em outras palavras: casa nenhuma fica em pé com colunas de medo. Se não conseguimos nem reconhecer nossas profundas necessidades não atendidas, e ainda engatinhamos em propor caminhos construtivos que substituam o medo por fôlego para reinventar nossa casa, espero que pelo menos não acendamos mais fogueiras no meio das chamas, senão daqui a pouco nem a casa nem o terreno serão habitáveis.

Se há algo que ainda torna nosso terreno fértil, esse algo é a democracia. Não arrisquemos perdê-la só para atender a necessidades imediatistas, artificiais e raivosas.


Blog do André Gravatá estreia no UOL Educação
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André Gravatá

André Gravatá é escritor e educador. Autor do livro Sublime e coautor do Volta ao mundo em 13 escolas e Mistérios da Educação. É um dos criadores da Virada Educação, que mobiliza escolas e territórios pelo Brasil. Hoje espalha sua poesia no jornal das miudezas. Em 2015, recebeu o prêmio Educador Inventor da Associação Cidade Escola Aprendiz.