Como nossos atos vão combater a barbárie daqui pra frente?
André Gravatá
Estou aqui pensando nos olhares das pessoas no ato em homenagem à Marielle, no dia 15 de março.
Olhares como colchas de retalhos.
Olhares como colchas de retalhos de indignação, de cansaço, de raiva, de dor, de admiração por uma pessoa tão cheia de vitalidade, mas especialmente retalhos pesados, fios de luto. Se puxássemos os fios, não acabaríamos nunca de puxar: as execuções de Marielle e Anderson abriram uma cratera nos olhos, nos corpos, funda, extensa, ancestral.
Abriram uma cratera no país. Pelo que Marielle representava. Pelo que ela fez, pela sua coragem. Pelo que ela ainda poderia fazer.
Esse buraco que agora nos acompanha, que está em nós, que entrou na linha do tempo do nosso país, rasga um antes e depois. Antes de Marielle. Depois de Marielle. A comoção continua, porque ainda há as investigações, ainda há o buraco em nós, ainda há o olhar em retalhos, ainda há toda a história do Brasil pulsando dentro desse acontecimento.
E não há como não somarmos ao buraco que se abriu em nós também o terror que nos atravessou enquanto educadoras e educadores em São Paulo foram agredidas com balas de borracha, bombas, gás de pimenta, cassetetes. Aconteceu tudo muito junto, muito emaranhado, muito inaceitável.
Momentos assim, de inflexão, de quebra, de perplexidade, nos relembram perguntas: Como nossos atos a partir de agora vão responder à barbárie? Como seguir contra essa barbárie? Como seguir com a possibilidade de ternura, de mudança, nesse chão em que se expande um imenso infértil? Não que os atos de alguns de nós não refletissem isso antes desta semana, não é isso, claro, mas acontecimentos desmedidos no seu terror como os dessa semana nos perguntam de novo, elétricos, aflitos, exigem mais de nós, exigem mais de nós: Como seguir contra a barbárie? Como nossos atos vão combater a banalidade do mal daqui pra frente?
Me faço agora essas perguntas, revendo no pensamento os olhares que encontrei ontem no ato em homenagem à Marielle. No ato em que batemos palmas para ela por um minuto inteiro. E mais de um minuto. Ocupando o que geralmente é um minuto de silêncio por um barulho nascido do corpo, por um barulho que é esse chamado pra nos mantermos presentes.
Me faço agora essas perguntas, lembrando que as últimas palavras escritas pelo educador Paulo Freire foram sobre o assassinato de um indígena em Brasília, em abril de 1997. Na época, cinco adolescentes mataram um indígena que dormia numa estação de ônibus. Tacaram fogo no corpo. E disseram para a polícia que estavam brincando… Nessas últimas palavras escritas por Freire, totalmente impregnadas por um feroz espanto diante da violência e uma urgente lucidez pela necessidade de denunciá-la, impregnadas por raiva e indignação, impregnadas por um buraco na alma de incalculável abismo, Freire diz: ''Se a nossa opção é progressista, se estamos a favor da vida e não da morte, da equidade e não da injustiça, do direito e não do arbítrio, da convivência com o diferente e não de sua negação, não temos outro caminho senão viver plenamente a nossa opção. Encarná-la, diminuindo assim a distância entre o que dizemos e o que fazemos''.
As palavras de Freire.
Os olhares que colecionei na manifestação.
As velas que algumas pessoas carregavam, com aquele fogo frágil e valente ao vento.
Tudo isso junto exige mais de mim, de nós. Exige uma resposta mais firme a muitas perguntas.
Como nossos atos vão combater a banalidade do mal daqui pra frente?