Por mais intimidade com nossa realidade
André Gravatá
Foi em 2017 que redescobri o Brasil por meio de uma frase no início da peça Selvageria, do diretor Felipe Hirsch.
Uma frase escrita em 1500, para o rei de Portugal, de autoria de Pero Vaz de Caminha, o mesmo que conheci na escola, ainda no ensino fundamental, mas que naquela época pouco me marcou.
Depois de ressaltar a exuberância e riquezas naturais das terras brasileiras, Caminha diz: ''Porém o melhor fruto, que nela [nesta terra] se pode fazer, me parece que será salvar essa gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar''.
''Salvar essa gente'', vejam só.
Nossa história começa a ser escrita com o anúncio de uma tragédia.
A peça de Hirsch, que esteve em cartaz em novembro e dezembro deste ano no SESC Vila Mariana, criada a partir de documentos e livros sobre o Brasil colecionados na Biblioteca Brasiliana de Guita e José Mindlin, além de pesquisa na Bibliographia Brasiliana, organizada por Rubens Borba de Moraes, era mais do que uma obra de teatro, era na verdade um chamado para nos espantarmos com o rastro de insanidade que nos trouxe até o presente. Um grito por mais intimidade com a nossa realidade.
A cena com um trecho da Lei Saraiva, de 1881, por exemplo, estrondosa na sua violência por meio da atuação de Magali Biff, abria um espantoso inventário de brutalidades. Quando entrou em vigor, a lei instituiu o Título de Eleitor e proibiu que analfabetos e pobres pudessem votar, também conservando a inaptidão do voto para as mulheres. E diziam que essa medida faria as pessoas procurarem escolas para aprender a ler! A lógica persiste: negam os direitos e o povo que se vire, que se adapte.
Em outro documento apresentado na peça, de autoria da inglesa Mrs. Jemima Kindersley, reconhecida como a primeira mulher a escrever uma narrativa sobre o Brasil, há a seguinte anotação sobre sua passagem pela Bahia, em 1777: ''A corrupção no estado é naturalmente acompanhada pela corrupção das mentes das pessoas: quanto mais forem motivadas pelo medo, menos honradas serão; e quanto mais difícil for obter justiça, maior serão sua esperteza e desonestidade; até que cada homem olhe para o vizinho com ar de suspeita e desconfiança''.
A cada vez que vasculhamos nossas raízes, descobrimos que é antigo o projeto de país em que o medo e a desesperança são radicalmente melhor distribuídos do que a renda.
A montanha de lixo que compunha o cenário da peça Selvageria, estrutura criada por Daniela Thomas e Felipe Tassara, pano de fundo e chão do cortejo da história do Brasil, era também um aviso: o terreno onde pisamos é incerto demais, minado demais, poluído demais.
Os atores e atrizes subiam e desciam a montanha de lixo durante a peça, por vezes caindo entre os sacos, por vezes desaparecendo naquele amontoado como se também representassem parte dos resíduos para descarte.
Semelhante ao nosso chão brasileiro, que demanda de nós, hoje e em 2018 ainda mais, o máximo de intimidade com o terreno, o máximo de sensibilidade, o máximo de astúcia para ler a história, para ler as entrelinhas do mundo, para nos locomovermos entre tanta poluição, lamaçal e incerteza, para não afundarmos nos amontoados brutos, para não aceitarmos respostas medíocres diante de problemas complexos, para não aceitarmos respostas medíocres nem diante de problemas simples.