Que nossas certezas sejam desafiadas
André Gravatá
Para os pais de X, desigualdade é tabu.
Para os pais de X, o tema das drogas é outro tabu.
Para os pais de X, a homossexualidade é mais um tabu.
Os pais de X têm medo que seu filho entre em contato com tabus. Querem protegê-lo do que não conhecem. Não sabem ao certo como o desconhecido pode influenciar seu filho.
Na escola, os professores de X não têm liberdade para abordar temas que sua família considera tabus. Ontem mesmo o professor de história de X recebeu advertência da direção por uma ''aula sobre ditadura com abordagem enviesada''. A aula sobre Darwin também rendeu uma advertência para a professora de biologia. Outra educadora dessa escola hoje iniciou um capítulo sobre sexualidade. Uma garota compartilhou uma pergunta relacionada com o tema do aborto, colegas se incomodaram e disseram: ''Não responda, professora, escola não é lugar pra falar disso''.
Na rotina, X passa muitas horas numa rede social que exibe principalmente as postagens de pessoas que pensam ideias parecidas. X vive num mundo onde suas certezas não são desafiadas. Pelo contrário, elas são sistematicamente reafirmadas.
Faz pouco tempo, X abriu um livro por acaso. Encontrou essa obra num canto da escola, abandonada, abriu sem ver o título nem autor. Leu trechos:
“A educação deve demonstrar que não há conhecimento que não esteja, em qualquer grau, ameaçado pelo erro e pela ilusão. A teoria da informação mostra que existe o risco de erro (…) em toda a comunicação de mensagem.
(…)
O inesperado surpreende-nos. Porque nos instalamos com demasia segurança nas nossas teorias e nas nossas ideias e estas não têm nenhuma estrutura para acolher o novo. Ora, o novo brota sem cessar. Nunca podemos prever como se apresentará, mas devemos contar com sua chegada, quer dizer contar com o inesperado. E uma vez chegado o inesperado, é necessário ser capaz de rever as nossas teorias (…)
A realidade não é evidentemente legível. As ideias e teorias não refletem, mas traduzem a realidade, que podem traduzir de forma errada. A nossa realidade apenas é a nossa ideia de realidade.”
Por um segundo, X pensou que aquele texto era complexo e interessante.
Por um segundo, X se perguntou se a escola poderia ser um espaço para desafiar ideias de realidade e certezas, quem sabe muitas delas sejam ilusões?
Por um segundo, X pensou que não era nada interessante viver num mundo em que, para respeitarem suas crenças, instaura-se uma tensão constante no ar, um clima de neutralidade que esconde os braços gordos do autoritarismo apertando a garganta da pluralidade.
Por um segundo, a frase “QUE NOSSAS CERTEZAS SEJAM DESAFIADAS” caiu na mente de X como um asteróide. Como erupção de um vulcão dentro do corpo. Decidiu tatuar a frase no braço pra nunca mais esquecer, pra ler todo dia pelo menos uma vez.
Para os pais de X, tatuagem é tabu.
[Que a história fictícia de X exista apenas na ficção.]
* Hoje em dia vemos ganhar espaço o projeto Escola Sem Partido, que defende uma educação ''sem doutrinação'', abrindo brechas para perigosos desdobramentos – afinal, quem vai diferenciar o que é doutrinação ideológica do que é estímulo à autonomia, capacidade crítica, livre manifestação assegurada pela Constituição? Para garantir a essência plural do artigo 5 da Constituição, que versa sobre a liberdade de expressão e manifestação, precisamos de escolas com terreno fértil para abordar temas diversos e complexos em formatos de interação com mais significado para alunos, educadores e comunidades, que questionem modelos de educação centrados na transmissão de conteúdos. Para se inspirar com diferentes propostas de educação atuais e em território brasileiro, veja este mapa de Inovação e Criatividade na Educação Básica.
** O livro encontrado por X se chama Os sete saberes para a educação do futuro, de autoria do francês Edgar Morin.