Não consigo me habituar
André Gravatá
Dois amigos conversam num café. Um deles, chamado Bérenger, deixa claro: não se habitua com uma vida que se resume ao cansaço de tanto trabalhar. O amigo, Jean, é conformado: ''Todo mundo tem que se habituar''.
É durante a conversa que acontece um fato extraordinário: aparece um ruidoso rinoceronte por perto. Acelerado, violento, levanta poeira por onde passa. Deixa um rastro de perplexidade.
Os dois amigos não sabiam que rapidamente todas as pessoas ao redor também se transformariam em rinocerontes. Inclusive Jean, o defensor da normalidade. Apenas uma pessoa escapa da metamorfose: Bérenger. Percebemos a consciência desse personagem em carne viva quando compartilha seu dever mais radical a partir de então: ''… se opor aos rinocerontes, lucidamente, firmemente''.
Essa é a história de uma peça de teatro intitulada O Rinoceronte, escrita em 1959 pelo dramaturgo Eugène Ionesco. Os rinocerontes que correm pelo texto nos convidam a olhar no espelho para conferir o nível de deformação da nossa consciência. Conferir se a indiferença já transformou nossa linguagem em urro. Se nossa incapacidade de considerar o normal como absurdo nos fez acolher a transformação em animais violentos como uma dádiva ou inescapável aridez da maturidade.
A frase de Bérenger que mais representa o porquê de ele não ter se tornado um rinoceronte é ''não consigo me habituar''. Não consegue se habituar ao trabalho. Não consegue se habituar à uma aparência limpa, de barba feita, cabelo penteado. Não consegue se habituar com o barulho dos rinocerontes.
''Os mortos são mais numerosos que os vivos. O número deles aumenta e os vivos são raros'', comenta Bérenger no início da história. E os mortos, os rinocerontes, estão no poder. Há rinocerontes trabalhando para desmontar as conquistas trabalhistas. Há rinocerontes invadindo as escolas para silenciar professores. Há rinocerontes em fila nas redes sociais. Há rinocerontes disfarçados de bons sujeitos. Há quem se torne rinoceronte sem perceber, ludibriado pelo rinoceronte que se finge de bom sujeito.
Por outro lado, o ato de apontar para os rinocerontes também é acompanhado de um perigo: pode criar uma pretensão exagerada naqueles que não se reconhecem como rinocerontes. E aí quem não se sente rinoceronte acaba virando rinoceronte ao se plantar numa posição que reforça insistentemente o ódio ao outro.
Mas a reflexão que mais pulsa na peça e mais tem relação com nosso presente não é a divisão do mundo entre rinocerontes e humanos. A pergunta principal é o quanto somos capazes de nos habituar ou não com o estado de coisas ao nosso redor.
Sugiro um exercício breve: preste atenção nas situações vividas nesta semana em que você se sente movido a declarar intimamente e/ou publicamente que não consegue se habituar a elas. Não conseguir se habituar é o que pode garantir um pouco de sanidade nestes tempos em que o absurdo e a normalidade caminham tão próximos.